Dia 9: Aosta - Ivrea - From Antwerp to Torino - CycleBlaze

September 22, 2019

Dia 9: Aosta - Ivrea

O mau tempo anunciado na previsão afinal não chegou. No dia anterior, ainda antes de dormir tinha ido apanhar a tenda do estendal com medo que se voltasse a molhar durante a noite mas afinal não caiu nem uma gota. O céu matinal estava cinzento mas não havia ameaça de chuva. A temperatura continuava amena e dava para sair de calções e T-shirt.

Tomei o pequeno almoço no hotel, arrumei tudo, paguei e saí rumo a Ivrea. Seriam uns 75 km que começam por uma ciclovia ao longo das margens do rio Dora Baltea.

O percurso não é particularmente interessante nem o deixa de ser. É uma ciclovia com bom piso, no meio de árvores, longe da estrada e sinuosa o suficiente para não ser monótona. Seria ideal para ser feita lado a lado com outro cicloturista em amena cavaqueira. Mas eu ía sozinho e cruzei-me com alguns atletas ocasionais apenas.

Os quilómetros vão-se sucedendo uns aos outros e eu já não esperava nenhuma surpresa. Iriam ser dois dias a pedalar até ao destino sem nenhum ponto particular. A paisagem também não variava muito. O vale de Aosta vai alargando, as montanhas em redor diminuindo de altitude e as estradas vão dando lugar a auto-estradas. Quando a ciclovia acaba sigo maioritariamente por estradas secundárias e ocasionalmente na berma da E25, uma via rápida que percorre todo o vale.

Este percurso é conhecido por ser feito por vários peregrinos. Vão-se encontrando alguns sinais e albergues para peregrinos ao longo do caminho. Numa das muitas aldeias por onde passei vi que apesar de ser domingo havia uma mercearia aberta com pão. Entrei, comprei pão e fruta. Cá fora mesmo ao lado havia uma fonte onde lavei um pêssego que comi e aproveitei para re-abastecer de água.

Mais adiante, já eu ia em velocidade de cruzeiro o gps envia-me para um caminho menos óbvio e começo a aperceber-me de um movimento anormal de carros. Essencialmente carrinhas pick-up e muita gente a pé a caminhar na mesma direcção que eu. Chego a uma clareira e dou com um mar de vacas, castanhas e pretas, amarradas lado a lado a umas correntes enormes, alinhadas no chão. Todas as vacas estão amarradas com uma corda curta, têm uns chocalhos enormes pendurados ao pescoço e parecem muito nervosas.

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Raspam furiosamente o chão com as patas dianteiras e bufam freneticamente. Eu estava com um casaco vermelho e os sacos da minha bicicleta são todos vermelhos. Confesso que pensei que se uma destas bestas se solta muito provavelmente me vai escolher a mim como alvo.

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Mas o mar de vacas é proporcional ao mar de gente que andava de volta delas. Era meio dia e quase todos, famílias inteiras, pais, mães, filhos, avós estavam a piquenicar em mesas trazidas de casa, ou na caixa da sua pick-up.

Devia ser uma espécie de feira qualquer pensei. Resolvi ficar para perceber do que se tratava e como tinha fome encostei-me a um bloco de betão onde estava amarrada uma das correntes que segurava umas 50 ou 60 vacas. O ambiente era de festa, havia comes e bebes e música nos megafones.

Ao meu lado estavam dois velhotes a falarem uma lingua que eu não consegui identificar. Viram-me chegar e falaram-me em Italiano. Eu lá arranhei a dizer que era Português mas que vivia na Bélgica e ia a pedalar até Turim. Perguntaram se tinha vindo pelo Grand St Bernard. Pelos vistos é uma das travessias clássicas da região, seja a pé, bicicleta ou de outra forma qualquer.

Perguntei-lhes que idioma falaram. Riram-se e disseram que era Patuá, um dialecto do vale d’Aosta. Uma mistura de francês com italiano.

Explicaram-me também que o campeonato das rainhas ia começar dentro de 15 minutos que eu devia ficar para ver. Fiquei curioso e decidi ficar. Afinal era cedo e eu tinha o dia todo só para mim. O alojamento em Ivrea estava reservado.

Este campeonato é uma tradição ancestral onde as vacas que lideram as manadas nos pastos de altitude se confrontam. Basicamente no campo improvisado que não é mais do que um espaço rodeado por uma vedação precária, as vacas, duas a duas confrontam-se dando marradas uma na outra. Aquela que ceder perde e a vencedora passa a fase seguinte. São cerca de 8 vacas em simultâneo, 4 grupos de duas que se vão confrontando. Um confronto não dura mais que 2 minutos. De eliminatória em eliminatória lá se chega à grande vencedora.

Numa manada, a vaca rainha que conquista este estatuto da mesma forma é a que guia todas as outras no pasto de altitude. Isto permite aos pastores deixarem as vacas sozinhas nos pastos de montanha sem que elas se percam ou se espalhem. É também a vaca rainha que usa o chocalho maior e mais sonante.

Neste dia como todas tinham chocalho a sinfonia era estonteante.

Por ali me fui deixando ficar um par de horas a ver tanto as vacas à marrada como a ouvir os comentários dos treinadores de bancada munidos de uma grelha com a sucessão das eliminatórias. A primeira fase era para animais acima dos 500 kg. Sempre que uma delas se distraía e rumava em direcção à vedação eu punha-me em modo de partida. Enquanto lá estive nunca foi preciso mas imaginar um bicho com meia tonelada a correr atrás de mim não me deixava nada descansado.

Com alguma relutância lá me decidi a partir. Estava a gostar de estar ali a ver aquela festa tão bizarra mas ainda me faltavam uns km para chegar ao destino.

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A decisão de me fazer à estrada foi sensata pois passado pouco tempo perdi-me. O vale fechou e o gps mandou-me para um trilho de pé posto onde mal se conseguia andar. Eu via o rio e a autoestrada lá em baixo e tive que arrastar a bicicleta por uma encosta acima, com os pés a resvalar e o suor a escorrer-me pela testa. Larguei uns quantos impropérios em português, disse mal da vida e chamei nomes ao gps, como se ele fosse o culpado disto tudo mas, uma hora depois lá encontrei uma estrada de asfalto. Consultei o mapa de novo e percebi que estava bem. Bastava refazer a rota a partir daqui que iria dar a Ivrea.

Numa encruzilhada da estrada consulto o mapa a correr e sigo pela estrada da esquerda, que por acaso era a subir onde vi que também a subir segue um caminheiro de mochila às costas. Não demorou a apanhá-lo e vejo que é o Jean Jacques, o tal peregrino que tinha encontrado há 3 dias atrás ainda na Suíça.

Ele fica espantado por me ver pois supunha que eu, de bicicleta, já estivesse muitos mais à frente. Mas disse-lhe que tinha parado em Bourg Saint Pierre e em Aosta.

Ele também tinha passado uma noite em Aosta, num abrigo para peregrinos e ainda tinha assistido a uma missa na catedral mas tinha caminhado todos os dias sem parar e isso deu-lhe um grande avanço. 

Tirámos uma selfie juntos e quando consulto o gps confirmo que afinal estou no caminho errado.  Dever ter seguido para baixo e não para cima. Ele diz que está quase no destino dele e eu ainda me faltavam uns 35 km.

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Desejamos boa sorte um ao outro e seguimos em direcções opostas. 

Ivrea é uma cidade feia, pelo que vi. O meu alojamento fica nos subúrbios da cidade. É um apartamento no rés-do-chão com 3 quartos que os donos alugam, num edifício feio e incaracterístico. Por 22€, com duche, cozinha e uma cama não podia pedir mais.

Disseram-me para meter a bicicleta na rua nas traseiras. Eu assim fiz mas mal eles saíram fui buscá-la e metia-a dentro do quarto. Nem pensar que eu iria dormir com a bicicleta lá fora, em Itália, onde seria roubada enquanto eu dormia.

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O prédio do apartamento ficava numa zona sem nada de interessante para fazer mas tinha, do outro lado da rua uma pizzaria take away. Estamos em Itália por isso haverá melhor fórmula para o jantar que uma pizza?

Today's ride: 75 km (47 miles)
Total: 544 km (338 miles)

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